segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

SOBRE TODAS AS COISAS



3ª parte [vôo]


"Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado,
desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus"[*]
Dali, do alto do edifício, tudo parecia dele. O mundo pequeno aos seus pés. Viu que podia ter e querer o que sonhasse. As mulheres, os homens, as comidas e bebidas, carros, a vida perfeita, o amor perfeito, o beijo que não rolou. Tudo. O vento daquela noite soprava forte, frio e como uma lâmina afiada trespassava seu corpo débil. Ele abria os braços e girava, girava, na ponta do aranha-céu. Até pensou que podia ser Deus. Lá embaixo a multidão disforme não imaginava quais seus planos. "Eles que se fodam" dizia entre dentes, repetindo numa cadência absurda. "Sim! Eles que se fodam!"Os edifícios com suas luzes e pessoas, os televisores ligados, os sonhos desligados. A hora do jantar, a hora de transar, a hora de rezar, a hora de dizer adeus. Tudo podia ser visto, tudo podia ser feito. Ao longe a lua pálida, iluminava até onde seus olhos alcançavam. A cidade estava nua, transparente. O resto da aguardente entrou rasgando. Tudo era tão longe, ele não podia mais voltar "Você me enganou!", olhando pro céu gris. "Por que você me enganou?"
[...]
O lugar mais alto que tinha chegado foi quando subiu no telhado de sua casa para olhar a vista do vilarejo. De lá de cima, ele podia ver tudo. A roda gigante do parquinho, a lanchonete, a prefeitura, o campo de futebol. Tudo bem organizado. Podia sentir naquele momento o cheiro prazeroso do bolo de fubá que sua mãe preparava todas as sextas-feiras. E o café e a manteiga, o leite. Tudo irreal e tão real. E ele ficava ali até o sol se pôr, balançando os pés, podia escolher não comer se quisesse, "Na outra sexta tem de novo" pensava feliz.
[...]
Então pisou sem firmeza no beiral escorregadio, como numa corda bamba procurou equilíbrio. Tinha um objetivo. Era preciso seguir em frente. Abria os braços, pendia pro lado da rua [do alto os carros pareciam formigas apressadas], concentrado, cauteloso, claudicante... "Quero pegar na tua mão!" "Me dá tua mão..." Repetia como numaladainha. Pensava que na sua infância não existia drama, tudo era perfeito. Pensou forte, bem forte num dos poucos momentos felizes de sua vida. Sentiu seu corpo pender no vazio,sentiu-se confortável [talvez no berço foi assim...], essa sensanção duraria alguns segundos,mas ele estava em paz, sim, agora ele estava em paz.


*Texto baseado no trecho de Sobre Todas as Coisas de: Chico Buarque e Edu Lobo.

6 comentários:

joshua disse...

I must say that this is one of the very best blogs I've ever visited!

Congrats, Todo Foda!

PALAVROSSAVRVS REX

Todo Phoda disse...

Fique a vontade, Joshua. O Todo Phoda agradece sua visita.

Renato Alt disse...

Texto de uma beleza que nos faz refletir... singelo, forte, triste. Meus parabéns por reunir tanto em palavras tão bem servidas.
Abraços.

Todo Phoda disse...

mrenato é bom ter um leitor que tb é um escritor talentoso. o todophoda agradece.

Rackel disse...

(sem palavras para comentar, limito-me a soltar apenas essa interjeição!)

NOSSA!!!

bons ventos aí...

Todo Phoda disse...

Obrigado Raquel. Que bom que vc gostou. Servimos bem, pra servimos sempre. Grande abraço.