quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A engolidora de facas

"- Venha ver, venha ver...", berrava o gorducho barbado em cima de um caixote. A multidão se amontoava. Um anão passava a velha caixa de sapatos onde os curiosos, de vez em quando, depositavam suas moedas. As vozes se misturavam. Enquanto o gorducho se esgoelando apresentava o show: "A engolidora de facas, venha ver". Já tinha feito aquele número várias vezes. Era fácil. As pessoas gostavam. Mas naquele dia Maria queria ter nascido em outro planeta. Sua roupa cor-de-rosa estava velha e desbotada. A meia amarela rasgada. A sapatilha suja. Maria sonhava ser aeromoça e conhecer outros lugares. Mas era sempre a mesma coisa. Ela já conhecia o enredo de sua história. Olhou por entre uma fenda das cortinas vermelhas. A multidão estava pronta. Era preciso entrar. O espetáculo tinha que começar. Conferiu sua figura num espelho de pé, passou a mão nos cabelos, e olhou uma fotografia de Zacaria, um palhaço, o homem que tirou-a das ruas.Quando pisou no tablado, a multidão ovacionou. As madeiras rangiam, a impressão é que tudo aquilo desabaria a qualquer momento. Ela trazia as facas mágicas. O efeito era perfeito. As facas sumiam, garganta abaixo. Era nisso que a multidão deveria acreditar. As pessoas precisam acreditar nos truques. O apresentador cuspia palavras na cara de uns meninos que só conseguiram espaço embaixo do tablado. Maria engoliu a primeira faca. A multidão silenciou estarrecida. O anão corria atrás de uma moeda que caiu fora da caixa. Todas as facas eram falsas. As pessoas aplaudiam freneticamente, "Como ela faz isso?" e as donas "Pobrezinha, tão novinha". E Maria engolia uma maior. E os garotos viraram a cara com pavor. E o apresentador cuspia palavras. E o anão pegava a moeda. E Maria lembrava que de noite o gorducho barbado lhe visitaria. Como fazia há muitos anos. Desde que o palhaço morreu. A vida acabou quando o palhaço morreu. Mas Maria ainda insistia. Sim, o gorducho em cima do caixote, que cuspia palavras, entraria a noite e se lambuzaria. Ela sentiria asco. Uma dor que nenhum remédio aplacaria. Ela fingiria dormir. Como sempre. Aquele hálito azedo. O fuçar frenético. Até o fim. Até o fim. E depois... bem depois amanheceria. E Maria puxava a maior de todas as facas. Todas são falsas. É preciso acreditar no truque. A vida é truque que ninguém descobriu. Ela engoliu a faca, aos poucos, até onde pode. Sem dor. E o anão deixou a caixa de moedas cair no chão. E a multidão não acreditou no que via. E o apresentador engasgou-se. E os meninos embaixo do tablado ficaram com a cara toda vermelha.

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